sábado, 3 de dezembro de 2011

O amor sob três perspetivas

- Mãe, explicas-me o que é isso do "amor" de que os humanos tanto falam? - perguntou uma jovem estátua.
- Isso são assuntos que não nos dizem respeito! Deixa os assuntos dos Humanos para os Humanos e preocupa-te somente com aquilo que é a tua essência que é ser estátua. - respondeu-lhe friamente a mãe.
De todas as vezes que recordo este diálogo que travei com a minha mãe, um sentimento de pena assalta-me o pensamento, pelo facto de ela considerar que os sentimentos só podiam ser experienciados pelos Humanos. Provavelmente, a minha mãe jamais esteve perto de sentir algo, eu , pelo contrário, posso afirmar que os sentimentos não se restringem apenas aos Homens, as estátuas também sentem. Talvez, não seja muito comum o que eu estou a relatar, talvez mesmo, eu seja a única estátua que alguma vez se tornou um pouco mais humana.
Quando era mais novo, não compreendia porque razão os humanos passeavam de mãos dadas, sentavam-se perto de mim e trocavam eternos olhares ou trocavam palavras, das quais eu nunca entendia o significado.
Em determinada fase da minha vida, houve um ponto de rutura, um acontecimento que modificou irreversivelmente a minha essência e condição de estátua. Tudo o que outrora não compreendia ou julgava absurdo surgiu claramente como as águas de um rio.
O fatídico acontecimento passou-se num dia nublado de Domingo, no jardim onde havia habitado desde criança. O dia apresentava evidências de ser como todos os outros, no entanto, uma enorme agitação assombrou o jardim. Um mar imenso de jovens invadiu a minha casa de Infância, percorrendo desenfreadamente os canteiros, destruindo as flores e plantas e roubando a harmonia e a graça daquele jardim. As estátuas foram todas quebradas e as gaiolas que hospedavam espécies exóticas foram completamente arrasadas.
No meio daquele assombroso cenário, senti uma intensa dor de cabeça. Sim! Senti algo! O meu primeiro sentimento - a dor. A minha condição de estátua houvera sido abalada pela sublime e arrebatadora sensação de dor, reservada somente aos humanos. De seguida, algo mais profundo tocou a minha alma- a tristeza. Na verdade, eu estava a sentir um misto de sensações: por um lado estava assombrado por ter sentido algo, por outro estava deprimido por saber que o meu jardim jamais voltaria a ser o que era. Depois de toda esta confusão, lembro-me que senti uma dor de cabeça ainda mais intensa e vi a luz do sol a ser engolida por uma imensa escuridão. Quando finalmente acordei, estava num local que não me era de todo familiar.
Olhei em volta e analisei o espaço. Consegui vislumbrar da janela daquele sítio o meu jardim todo destruído. À minha volta, outro jardim florescia: quadros preenchendo paredes brancas, materiais de pintura desarrumados, pincéis espalhados pelo chão, telas e esculturas por terminar. Depois, um sorriso acolhedor, uns olhos expressivos, umas mãos cobertas de gesso e uma expressão que me trouxe à memória a mais bela flor do jardim onde outrora habitei.
"As flores foram assassinadas, os canteiros estavam irreconhecíveis, as estátuas anteriormente nobres, jaziam no chão humilhadas. Contudo, tu ainda permanecias de pé, ainda que te faltasse um pedaço da cabeça e tivesses a perna direita muito danificada. Sem hesitar, corri para ti, peguei-te e trouxe-te comigo para este atelier para te restaurar e e te devolver a tua anterior beleza. Passei longas noites a reconstituir-te a cabeça e a perna, mas adorei cada momento. De certa forma, recordas me alguém que outrora amei.
Ela estava a referir-se ao seu anterior namorado que tinha morrido num acidente de viação. Aquelas palavras inflitraram-se no meu gesso tão docemente quanto os raios de sol a abrir caminho pelas árvores de uma floresta. Naqueles instantes, alogo mais forte que a dor ou a tristeza apoderou-se de mim. Aquela misteriosa mulher restaurou-me, olhava para mim de um modo estranho e dizia -me ainda palavras mais estranhas. Nenhum humano jamais havia falado comigo daquele modo...
De início, não fui capaz de decifrar que nova sensação era aquela que se apresentava imponente diante de mim. Depois, finalmente descodifiquei que aquele novo sentimento era o amor. Não o posso explicar concretamente, mas na minha condição de estátua, senti que, de certo modo, eu amava aquela artista. Soube que era amor porque desejei dar-lhe a mão, olhá-la eternamente, chorar por ela quando partisse ou até mesmo experimentar os seus lábios, mas ela não podia ouvir o que eu estava a pensar, nem mesmo que o dissesse, pois os humanos não conseguem ouvir as estátuas.
Após ter-me restaurado, levou-me de volta ao meu jardim, mas colocou-me num local mais recôndito que o anterior onde estava, provavelmente para eu não correr o risco de ser destruido novamente. Continuou a visitar -me, colocava-me flores na base e comtemplava -me por largas horas. Ocasionalmente, trazia consigo o material de pintura: colocava um cavalete e uma tela na minha direção, retirava os pincéis da sua velha mala e , ao fim de demoradas observações, movia o braço pela tela. Parecia um cisne a dançar num lago, sugeria uma flor a balançar ao vento com movimentos subtis que me prendiam e impediam de desviar o olhar da sua figura.
Uma vez, ela virou a tela para mim e o que vi deixou-me siderado. De facto, eu era uma bela estátua! Pela primeira vez na vida, vi a minha imagem. Cor pálida, cabelos encaracolados a descer pelas costas, corpo torneado e nu e uma expressão serena no rosto. Nesse mesmo instante, a artista desfez-se em lágrimas e , secretamente, gosto de pensar que ela o fez porque percebeu a minha admiração e felicidade ao contemplar a sua pintura.  No entanto ela começou a chorar porque ia partir brevemente para Paris, para trabalhar numa galeria de um pintor francês.
Fiquei feliz pelo sucesso que a minha amante iria ter,mas por outro lado, desejei que ela não aceitasse a oferta de trabalho e continuasse ali comigo, visitando-me todos os dias e tornando-me cada vez mais humano a cada visita que fazia. Este era um sonho ou uma realidade impossível e eu não queria que alguém tão talentoso quanto ela se mantivesse num local presa a uma estátua que lhe recordava o tempo em que havia sido feliz.
Ela partiu nessa noite e eu senti o crepúsculo do amor - a saudade. Aos pouco essas saudade transformou-se em gratidão, gratidão por aquela mullher me ter mostrado o que era o amor. Podemos ter diferentes perspetivas em relação a este sentimento: ou somos a Mãe estátua, que considera que é um assunto que não nos diz respeito e que apenas atrapalha o alcance dos nossos objetivos; podemos ser a estátua que é surpreendida por algo que julgava não existir e aceita-o, deslumbrando-se e melhorando a sua essência ou podemos ser a artista que vê o amor como um "restauro" para a alma e tem a capacidade de esquecer o passado e voltar a amar outra vez.

Um comentário:

  1. Très bien! Bravo! Mas a sério, é uma história interessante e imaginativa,
    Parabéns :-)

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