segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Carta de um soldado das trincheiras

29 de Novembro  de 1916, França, Verdun
           
Querida Margarida,
Se soubesses o quanto anseio por voltar a ver o teu sorriso, se soubesses o quanto sinto a falta do teu amor, se soubesses o quanto desejo sair deste inferno e voltar a ver - te! As minhas memórias contigo são a única alegria e esperança que me mantêm vivo e a escrever estas linhas que, provavelmente, quando chegarem a ti, já não estarei ao teu lado...
Já vão nove meses de batalha, nove meses de sofrimento, de angústia e saudade... A batalha iniciou-se em Verdun, em Fevereiro e estamos quase em Dezembro e não vejo um fim próximo.
Como sabes combato pela França contra a Alemanha, na frente Ocidental. Tenho tido notícias de colegas e amigos que combatem na frente Leste e Balcânica e a sua situação é semelhante ou mais grave que a minha.
Esta guerra está a ser travada no mar, no ar e na Terra e as nações estão todas envolvidas. Nesta guerra mundial, os interesses económicos e a posse de territórios sobrepuseram-se aos valores humanos. Existem rivalidades políticas e económicas com as quais se justificam esta guerra, por exemplo entre a minha pátria e a Alemanha, o que cria um clima de ódio, tensão e cobiça entre os países.
Tenho a sensação que o mundo está dividido: de um lado o meu país, a Inglaterra e o Império Russo, por outro lado a Alemanha, o Império Austro-húngaro e o Império Otomano. Como vês a batalha que travo em Verdun é apenas uma amostra, bem fiel, do que se passa no resto do mundo! Quanto tempo mais durará esta guerra entre Aliados e Potências Centrais? Quanto tempo durará esta batalha injusta entre a França e a Alemanha em Verdun? Quanto tempo durará até os grandes líderes perceberem o grande erro que estão a cometer?
Lembras-te da nossa despedida? Estávamos confiantes da vitória, pensávamos que o afastamento ia ser por pouco tempo, que iríamos vencer rapidamente. Ilusões... Ilusões em que nos fizeram acreditar, ilusões que espalharam em cartazes de mobilização de pessoas para a guerra. Esta guerra está longe de ser fácil e curta! Estes nove meses, para mim estão a ser nove anos! Já não aguento viver, ou melhor, sobreviver nesta horrível e desumana trincheira.
Já que não nos vemos há muito tempo e já que há a possibilidade de não nos voltarmos a ver, vou contar-te como tenho passado os meus dias. Ao leres esta descrição que te vou fazer, não quero que chores, mesmo que o que te vou contar seja triste. Desculpa estar a escrever estas linhas tristes, mas encara-o como uma grande prova de amor, porque tudo o que passei só o consegui por ti, pela esperança de voltar a vislumbrar o teu sorriso, voltar a ouvir a tua voz, de voltar a cruzar o meu olhar com o teu. Graças a estas esperanças tenho conseguido manter-me vivo, por isso não derrames nem uma única lágrima ao leres como tem sido a minha vida aqui. Vou contar-te como é a trincheira, pois és a minha única e eterna confidente.
A trincheira onde estou tem diversas divisões: a enfermaria, onde se cuidam dos feridos; o quartel-general da companhia, o posto de observação, a trincheira de tiro, a cozinha e a trincheira de comunicação. Estamos cercados e protegidos pelo arame farpado e entre nós e o inimigo existe a Terra de ninguém.
Tudo à minha volta é negro, desolador, assustador e sufocante. Enfim, tudo o que te vier à cabeça e que te faça lembrar a guerra. Este é o cenário, um pano preto, escuro com pequenas divisões onde os actores (soldados) tentam desempenhar o seu papel sem se esquecerem do texto.
Agora vou descrever-te o que ouço: barulhos de morteiros, de metralhadoras, gritos, tiros, explosivos; passos apressados e discretos, por vezes não discretos o suficiente, e o barulho dos corpos a tombarem na Terra de ninguém.
Para agravar, para tornar ainda a peça mais difícil, as condições de vida são horríveis. Por vezes, quando chove ficamos com água até à zona das coxas e lama nas fardas. O frio entra-nos pelas entranhas, os insectos, como os mosquitos, incomodam o dia inteiro e os bichos comem a nossa comida. Por vezes chego a colocar jornais dentro da minha farda e nas costas e peito para combater o frio. À noite, no escuro da trincheira, tenho um fiel companheiro que passa por mim e prova a minha comida todos os dias: o rato. Este não vem só, muitos outros passeiam por cá.
Como deves perceber a falta de higiene aliada a estas condições levam a doenças pulmonares e mentais. Levam também a que muitos soldados se suicidem e a que outros simulem a loucura para se verem livres deste inferno. Alguns decidem fazer o trabalho dos morteiros ou dos explosivos e metralhadoras, acabando com a sua própria vida.
E não é só o medo de morrer, também é o sentimento de culpa, o peso na consciência de matar alguém, que me atormenta. Matar seres humanos aleatoriamente, sem dó nem piedade, destruir vidas, famílias e sonhos... Custa-me muito, a sério que sim, mas a guerra é assim. Um soldado há que ser forte e às vezes frio.
Deves estar a perguntar o que aconteceu aos teus dois irmãos. Tenho pena de te revelar a verdade, mas é melhor saberes por mim do que alimentares falsas esperanças. Tenho uma boa e uma má notícia, qual queres ler primeiro? Vou contar-te primeiro a boa notícia, pois sempre foste uma pessoa optimista, acabando por me contagiares com essa boa energia. Então a boa notícia é que o teu irmão mais novo está são e salvo (dentro do possível) e trabalha na cozinha; a má notícia é que o teu outro irmão mais velho... O teu irmão mais velho... Morreu de asfixia, devido ao gás que os alemães lançaram. O gás é outro problema, por vezes não conseguimos colocar as máscaras de gás correctamente e acabamos por ser asfixiados pela incorrecção da posição em que está a máscara. Sei que é difícil receber uma notícia destas, mas por favor não desanimes, sê forte pelo teu irmão mais novo!
Além do mais, agora sem os homens aí no país, as mulheres têm de assegurar a economia do país. De certo que já espalharam cartazes para a mobilização da mão-de-obra feminina. Vês, tens mais um motivo para lutar! Tu que és tão a favor dos direitos das mulheres! Pode ser que assim a sociedade perceba que as mulheres são iguais, em direitos, aos homens, conseguindo desempenhar as tarefas que estes faziam.
Mas diz-me, esquece por momentos a vida triste e horrível que te descrevi e diz-me como vai a minha família, a tua família e como vais tu? Manda muitos beijos ao meu pai e à minha mãe, também à minha irmã, diz-lhes que os amo muito.
E tu? De certeza que ainda tens os mesmos dourados caracóis, os reluzentes olhos verdes, a figura esbelta e curvilínea e a face meiga e delicada de sempre. Quero que saibas que quando disparo penso em ti; quando estou cheio de frio e coberto de lama, o teu coração aquece-me, quando na minha mente me lembro das mortes e dos companheiros que perdi, afasto esses pensamentos com a tua alegria e com o verde dos teus olhos; quando sinto medo ou fraqueza a tua força faz-me vencer e ter coragem para enfrentar o inimigo.
Quando tiver de correr pela Terra de ninguém, tu estarás a dar-me a mão e estarás no meu pensamento. Quando chegar o momento de partir, estarás para sempre comigo e quando chegar o momento de morrer fá-lo-ei por ti e pelo nosso amor...

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